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Os trilhos do trem também trouxeram bola na rede e samba no pé para Campo Grande

Paula Maciulevicius | 26/08/2014 07:40
Os trilhos do trem também trouxeram bola na rede e samba no pé para Campo Grande
Em 1978, Igrejinha saiu com samba-enredo: "Nascia mais uma estrela na bandeira", em homenagem à divisão do Estado. (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

Dos trilhos do trem ao samba no pé. Da ferrovia ao campo de futebol. Pelas locomotivas que passaram há décadas por onde hoje é a varanda de quem nos conta a história, chegava um time de futebol e uma escola de samba. Separados por anos, unidos por serem irmãos, o Sociedade Esportiva Noroeste e a Igrejinha tinham muito mais em comum do que as cores vermelha e branca. Nasceram do apito, que avisava que o trem iria partir.

Valfrido de Almeida, mais conhecido como Dudu, tem 69 anos. É ele quem conta a história que se passou sobre os trilhos do trem no quintal de casa. A residência na rua 14 de Julho tem os fundos para a rotunda, à frente para o movimento de carros e dentro de si a marca de ter sediado duas grandes criações.

Ex-ferroviário, foi maquinista que se guiava mais pelo ritmo do samba do que o barulho nos trilhos. Irmão de Algentino José Nepomuceno, a família dedicou o trabalho à ferrovia e a vida ao futebol e Carnaval. "Eu fui jogador, mas amador. Parei agora, há poucos anos, mas quem fundou o Noroeste foi meu irmão e nesta casa aqui. Eu? Eu sou mais conhecido é pelo Carnaval", se apresenta Dudu.

Ex-ferroviário, Dudu é o fundador da Igrejinha. (Foto: Pedro Peralta)

A casa de número 3447 na região da Esplanada Ferroviária tem história. Tem bola, tem lantejoula, tem samba e grito de gol. O irmão, de apelido "Argentino" morreu aos 86 anos e coube ao Dudu contar o futebol que veio com o trem da Noroeste.

"Meu irmão era palmeirense. Os caras aqui em Campo Grande tinham um time no Rio e o outro em São Paulo. Eu não, já sou bairrista, sou comercialino. Ele fundou a Sociedade Esportiva Noroeste e escolheu as cores verde, vermelho e branco, da camisa do Fluminense e o nome 'Sociedade Esportiva', por causa do Palmeiras. Eram os dois times dele", relembra.

O ano de tudo isso, segundo conta o livro "Futebol, uma Fantástica Paixão, de Reginaldo Alves de Araújo, foi 1943. A diretoria era composta pelo engenheiro Arlindo Sampaio Jorge como presidente, o escriturário João Ezequiel Monteiro, na vice-presidência, o contador Pedro Alves, de tesoureiro e o ferroviário Algetino Nepomuceno como diretor social. Na história dos troféus, o Noroestão, como foi conhecido, se consagrou como campeão nos anos de 1947, 1949, 1950 e levou o tricampeonato de 1952 a 1954.

"Eram os campeonatos da LEMC (Liga Esportiva Municipal Campo-grandense), que incluía o Comercial, Operário, Primeiro de Maio, Alfaiates, Motoristas. Era a primeira divisão e lá estava o Noroestão. Jogava só ferroviário. Porque eu não jogava? Eu era menino ainda. Ele fundou o time porque a nossa família sempre foi de festa, nossos avós sempre foram de agitação", explica.

O Noroestão teve astros, em 1947 o time era formado por Rubens, Hélio, Lúcio, Eufrázio, Dominguinho, Chico Pretro, Alã, Aquiles, Adolfo, Ademir e Zelito. O técnico era Benedito Lebrinha e até massagista tinha, Rodolfo. Em 1950, além da formação anterior, a equipe também contava com Formiguinha, Zé Lito, Arlindo, Caneca e Nelsinho.

"Aí, no decorrer dos anos, o time foi ficando velho. Entraram novos ferroviários e eles formaram um time de novatos, eram os 'filhos', digamos assim, o Clube Atlético Ferroviário. Depois de uns anos, para não ficar essa história de dois times, eles fundaram um só. E como ia ser o nome? Tiraram o Sociedade Esportiva e ficou o Clube Atlético Noroeste, o CAN.

O mesmo livro que descreve os anos dourados do futebol campo-grandense, conta que foi em 1955 que o time dos novatos saiu à campo. Criado pelo inspetor de tráfego da Noroeste, Lázaro, os jogadores eram novos de idade e de fôlego. Por anos, os dois disputaram como ferrenhos adversários. O Noroestão nunca mais alcançou título e nem o recém formado time. O resultado foi que o troféu não fora mais erguido pela nação ferroviária. Foi daí a ideia de fundar as duas equipes, vinda do escriturário João Ezequiel Monteiro, aí predominou o nome mais recente: Clube Atlético Noroeste.

Sociedade Esportiva Noroeste de 1950 - em pé: Chico Preto, Eufrázio, Formiguinha, Lúcio, Hélio e Rubens. Agachados: Alfredo, Zé Lito, Arlindo, Caneca e Nelsinho. (Foto: Reprodução/acervo Academia Sul-mato-grossense de Letras)

Os anos não são os mesmos e nem estão juntos na mesma década, mas foi do futebol amador de Dudu que nascia a escola de samba Igrejinha, a ideia surgiu de jogadores que usavam chuteiras no Carnaval de 1975, quando o desfile era realizado na rua 14 de Julho, conta o fundador. 

"Nós tínhamos um time chamado 'Lá Vai Futebol Clube'. Fomos jogar bola e depois todos nós fomos assistir ao Carnaval. Quem desfilou em Campo Grande foram duas escolas de Corumbá, uma delas a Império do Morro, que existe até hoje e não desfilou nenhuma de Campo Grande. No palanque, falamos e aí, vamos lá? E anunciaram que ano que vem sairia uma escola de samba de Campo Grande, que não iria precisar buscar lá em Corumbá". 

A lembrança traz uma risada tímida. De nostalgia, de saudade, de quem se lembrou como o futebol virou samba. "E o nome: como vai ser? Nos perguntamos. 'Lá vai bola' não ia dar. Então vamos dar Igrejinha? E Igrejinha não tem nada a ver com igreja. Não existe igrejinha e nem igrejinha, significa fuxico, mexerico", narra.

Década de 80, Igrejinha com Edson Contar, à época diretor de harmonia. (Foto: Fundação Eduardo Contar)

Do nome ao samba-enredo, foi um ano de preparação, como já havia sido anunciada, salvo engano de Dudu, pelo radialista Ramão Achucarro, era preciso honrar a palavra e mostrar que Campo Grande sabia também fazer samba. "E as cores, como vai ser? Como era quase todo mundo comercialino, falamos, vamos por vermelho? Aí eu lembrei do meu irmão e falei vamos por vermelho, verde e branco? Mas tiramos o verde, ficava muito gasto, eram três cores. E a Igrejinha foi a escola mais querida, era formada por ferroviários, funcionários dos Correios e policiais na época", lembra.

Na primeira saída, a escola, segundo Dudu deu show. Mostrou o que era comissão de frente e cantou um samba chamado "Bandeirantes Estrelizado". "O pessoal nem sabia o que era porta-bandeira, mestre-sala, samba-enredo. O pessoal não cantava, só batia. Foi aqui em casa que a gente formava o carro alegórico e a Igrejinha foi, na minha gestão, campeã 10 vezes consecutiva", fala com orgulho. 

Campo-grandense de nascença, o parto de Dudu foi feito ali, na mesma casa que abrigou tanto balanço. Fosse pelo passar do trem, pela comemoração dos títulos do Noroestão à formação da Igrejinha.

E se não fosse a Noroeste? Pergunto para Dudu. "Eu acho que se a gente não estivesse aqui, não tinha acontecido isso. O trilho passava aqui, aqui. Os meus vizinhos brincam que daqui eu não posso mudar, que eu não posso morrer. Eu penso que se não tivesse a Igrejinha, não ia ter nem Carnaval em Campo Grande. Se eu gosto daqui? Aqui é a minha vida, aqui", frisa como quem quer deixar claro o amor à Capital e principalmente aos trilhos da Noroeste.

"Eu acho que se a gente não estivesse aqui, não tinha acontecido isso. O trilho passava aqui, aqui...", frase de Dudu a Campo Grande e também à casa onde nasceu e sambou. (Foto: Pedro Peralta)
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