Reportagens Especiais

Força de guerreiro: num cenário espinhoso, natureza briga por espaço

Condenado à extinção, Lago do Amor resiste aos percalços do mundo moderno sendo abrigo e proteção no cerrado.

Anahi Gurgel | 26/08/2017 14:10
Garças-vaqueiras que chegam no fim da tarde aos bandos para pouso no aconchego do Lago do Amor. (Foto: André Bittar)
Garças-vaqueiras que chegam no fim da tarde aos bandos para pouso no aconchego do Lago do Amor. (Foto: André Bittar)

Um guerreiro, em constante luta e “punhos em riste” frente aos inimigos do tempo. No ambiente espinhoso do mundo contemporâneo, o Lago do Amor é ainda ambiente onde germina a vida no verde das matas e nas inúmeras espécies de aves, mamíferos e peixes que dependem de suas águas.

O reservatório, que está prestes a completar 50 anos, resiste bravamente a um avançado processo de assoreamento e eutrofização – nome complicado para definir poluição das águas causada por excesso de matéria orgânica.

A ausência de planejamento para se erguer prédios e mais prédios em Campo Grande, ao longo das décadas, é a grande responsável pelo definhamento de um dos mais importantes cartões postais da cidade. E foi num cenário cheio de desafios urbanos, durante um passeio descompromissado em uma tarde qualquer, que o poder da natureza se revelou.

Por do sol no Lago do Amor encanta muitas famílias. Cenário típico de Pantanal, em plena área urbana. (Foto: André Bittar)

Atravessar a famosa pinguela no campus da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) em direção ao lago, é uma experiência que permite observar os renascimentos nesse ambiente. Tem um confiante casal de pomba asa-branca fazendo ninho e muitas árvores mulungu-candelabro e sangra-d'água, típicas de áreas em recuperação.

Sem contar o balé incrível que as centenas de garças-vaqueiras fazem quando chegam de suas andanças pelos pastos para descansar no aconchego do pouseiro do lago. Juntam-se a elas iriris, biguás, marrecas, quero-queros, frangos-d'água, curicacas, araras e até morcegos, que bebericam o lago, como que beliscando sua superfície. No chão, capivaras; na água, jacarés e tilápias. Sim, há vida ali e ela é forte e fiel às suas origens.

“São claros os sinais de que este ambiente está em recuperação. É evidente que 'braços' do córrego Bandeira, que cruzam o campus, estão muito assoreados, mas é fantástico perceber a capacidade de luta da natureza. O segredo é deixar fluir, não interferir; ela busca seu caminho”, revela o doutor em ecologia Paulo Robson de Souza, professor de prática de ensino da UFMS.

Doutor em ecologia, Paulo Robson de Souza aproveita o belo pôr do sol para registrar as espécies de animais no local. (Foto: André Bittar)

Signos - Passeios de pedalinhos no Lago do Amor ainda estão bem vivos na memória da historiadora Alisolete Weingartner, que completa 80 anos no próximo dia 31. “Eu e Campo Grande somos virginianas: meticulosas, práticas e trabalhadoras”, brinca.

Ela conta que o reservatório foi implantado na década de 70, durante a construção da cidade universitária.

"Ele foi projetado com o propósito de embelezar o campus, servir de referência para pesquisas ambientais, e também para amenizar o seco clima do cerrado sul-matogrossense. Era beleza e funcionalidade juntas”, diz.

“Hoje, as pessoas ainda frequentam o lugar, mas já foi muito mais movimentado por famílias, turistas. Temos que retomar isso, até por se tratar de um importante espaço para disseminar a educação", acredita.

Muito amor envolvido - No início, era chamado Lago das Tulipas. Lugar bonito, de natureza exuberante, e isolado. Acabou se tornando ponto de encontro de muitos casais que procuravam um local tranquilo e romântico para namorar. Não deu outra: ficou conhecido como Lago do Amor, e não por causa do formato de um coração, como muita gente pensa – e jura que enxerga!

Quem duvida, afinal?

Alias, não se sabe mais o quanto ele perdeu de suas linhas e traçados ao longo desses quase 50 anos. Estudos da própria universidade, indicam que um ininterrupto processo de assoreamento já diminuiu 58,5 mil m³ de seu volume, em apenas nove anos.

Isso equivale a 3 campos de futebol de material sendo despejado ali sem trégua entre 2008 e 2017. “Se nada for feito, considerando a taxa de variação nos últimos anos, o lago estará completamente cheio de sedimento em 2038", alerta Teodorico Alves Sobrinho, integrante do grupo de pesquisa HEroS: Hidrologia, Erosão e Sedimentos, da UFMS. 

Rodrigo Giasante, diretor de meio ambiente da Planurb, e sua equipe iniciaram estudos para "resgatar" a bacia do Bandeira. (Foto: Anahi Gurgel)

Raio X- Surge uma luz quando se pensa em resgate do Lago do Amor. Uma força-tarefa entre prefeitura e UFMS teve início neste ano e tenta evitar o pior. Não será fácil, muito menos rápido.

O árduo trabalho começou a partir de estudos mais antigos realizados pela secretaria de meio ambiente, envolvendo toda a Bacia Hidrográfica do Bandeira, que agrega os córregos Bandeira, Portinho Pache e Cabaça.

“Não basta pensar só no Lago do Amor. É importante conhecer e compreender toda a bacia onde ele está inserido. Iremos percorrer cada trecho dos três córregos e traçar um diagnóstico da atual situação”, explica o arquiteto e urbanista Rodrigo Giasante, diretor de meio ambiente da Planurb (Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento).

Somente assim, será possível estabelecer metas e apontar ações a curto, médio e longo prazo, para realmente salvar os reservatórios da morte. Dentro de 1 ano, será possível apresentar os primeiros levantamentos.

Aguenta, guerreiro!

Abaixo, registros de um fim de tarde no Lago do Amor. Fotos de André Bittar.

Garças vaqueiras chegam ao final do dia para descansar no Lago do Amor.
Capivaras dominam área alagada e já estão acostumadas com o movimento de pessoas.
Acadêmicos passeiam pelas trilhas no entorno do reservatório.
Capivaras em plena época de reprodução. Há vida no lago.
Pôr do sol deslumbrante presenteia campo-grandeses.
Asa branca fazendo ninho na mata ao redor do lago.
Professor Paulo Robson mostra assoreamento de 'braço' do córrego Bandeira, que cruza o campus.
Aves se alimentam no entorno das águas "assoreadas" do Lago do Amor.
Pinguela no campus que dá acesso ao Lago do Amor.
Sandra-d'água, ocorre em ambientes de solo alagável, apropriada para restauração no cerrado.
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