Comportamento

Rua divide 2 nordestinos que viram “cabras da peste” pela paz no Itanhangá

Thailla Torres | 29/05/2019 07:16
Bento comemora saúde da família e vida difícil que ficou no passado. (Foto: Thailla Torres)
Bento comemora saúde da família e vida difícil que ficou no passado. (Foto: Thailla Torres)

Ao longo dos 600 metros da Rua Sofia Melke, no Itanhangá, o verde das árvores e fachadas suntuosas dos casarões formam parte do bairro. Mas em um passeio a pé em busca de pautas, de colorido, encontramos os sorrisos de dois seguranças nordestinos, com garras para manter ali a “paz” que conquista a confiança dos moradores.

Um deles não tem dúvidas, reivindica para si o título de vigia mais seguro que qualquer central de monitoramento. Há 40 anos, João Soares, já fazia segurança em bairros nobres. Sempre atento e muito desconfiado, ele começou observando que lugar nenhum deve ficar sozinho.

Com o tempo, os serviços de vigia foram desaparecendo, tendo em vista o investimento na “modernidade”, mas ele nunca desistiu. “Tem gente que prefere só câmera e cerca elétrica, mas um cabra da peste vale mais que um tiro e um cacete”, afirma se referindo à segurança feita sem nenhum tipo de armamento. “Muita gente pergunta se a gente garante a segurança mesmo, mas veja só, eu dou toda a pinta (característica) do cabra, vejo o rosto, roupa, sapato, tudo. Então quando ele me vê, ele nem pula o muro”.

Há alguns anos, quando se aposentou, ele diz nem ter cogitado a possibilidade de curtir a vida tranquilo dentro de casa. Preferiu continuar nas ruas trabalhando, já que há quase sete anos conquistou numa rua só o respeito e o carinho de alguns moradores. “Trabalhei a vida toda, trabalho não me dá medo. É claro que isso daqui é só um bico, não é um dinheirão, mas eu gosto de cuidar daqui”.

Há 5 anos ele faz segurança no bairro e tem feito boas amizades. (Foto: Thailla Torres)

Hoje, trabalhando das 6h até as 14h, João não só faz a vigilância, com olhar inquieto, como distribui simpatia a quem passa, embora boa parte nem ligue. “Tem gente que só dá uma levantadinha na mão, outros fingem que não vêem. Mas nem me importo, de onde eu venho a gente aprende a falar com todo mundo, é respeito”.

Emotivo, o segurança enche os olhos para falar do Nordeste, da cidade de Palmeira dos Índios (AL) e da saudade. Nasceu numa família humilde, passou boa parte da infância e adolescência na roça. “Segurando a enxada minha filha”. Só veio para Mato Grosso do Sul atrás de um irmão e acabou recomeçando. “Gostei daqui. Terra verde, cheia de árvore”.

Depois que começou a trabalhar de segurança, João se lembra das dificuldades que ficaram para trás. “Tivemos uma infância difícil, então queria dar uma vida melhor pra minha família e consegui. É uma vida simples, mas tenho muito orgulho”.

A 300 metros dali encontramos outro segurança, o nordestino Bento Sebastião da Silva, de 79 anos. Ele é vigia mais recente da rua, mas cheio de simpatia.

Nascido em Campina Grande, na Paraíba, os olhos parecem cheios quando logo de cara questiono o passado. Bento recorda de uma infância difícil por ser um dos filhos mais velhos. “Éramos em oito irmãos, os três mais velhos pulavam cedo e iam roçar. Na hora do almoço a gente comia mesmo só feijão com farinha, carne só no sábado, porque não tinha dinheiro pra comprar a semana toda”.

Seu João está há 7 anos na mesma rua e não nega sorriso para ninguém. (Foto: Thailla Torres)

Hoje, com aposentadoria e fazendo a segurança até as 18h, maior alegria é ver o congelador cheio. “Lá em casa a gente come carne todo dia, no meio da semana tem até peixe. Não deixo faltar”.

Assim como seu João, Bento fica andando e observando atento quem passa na rua. Tem um cantinho reservado em um muro com banheiro e espaço para uma água gelada. Durante o dia ganha almoço de um vizinho, “um doutor muito simpático”, diz. Aos fins de semana, ainda saboreia bons churrascos. “De vez em quando as donas trazem uma marmita com almoço bem gostoso, às vezes tem churrasco, tem umas donas que cozinham muito bem nessa rua”, brinca.

No dia a dia, o desafio é cuidar a rua e, se algo grave acontecer, imediatamente entrar em contato com a polícia ou dos donos. Mas o serviço ainda rende pedidos inesperados daquele vizinho que pede para o vigiar cuidar a pulada de cerca do companheiro ou companheira, seu Bento jura que nega. “Eu não aceito porque não acho certo cuidar da vida de ninguém só. Só venho aqui para fazer a segurança, isso é bem claro e eles já sabem”.

A vantagem é poder conhecer os vizinhos e, aos poucos, estreitar a relação. “Quando é vizinho novo ele não conversa muito, mas os antigos a gente faz amizade, e eles param aqui para saber um pouquinho da rua, se está tudo bem. Eu gosto, tem uns muito simpáticos”.

À noite, o turno ganha outros vigias. Bento e João não sabem se são nordestinos, mas os admiram pela coragem. “A noite é mais perigoso, né? O cabra tem que ser bom e corajoso, e eles são”, conclui.

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O trabalho parece árduo, mas ele garante que fica feliz em contribuir com a "paz". (Foto: Thailla Torres)
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