Comportamento

Rosely viveu 27 anos em cárcere privado mesmo sem nenhuma grade ou portão

Paula Maciulevicius | 17/03/2017 07:38
Não havia grade, cadeado ou portão que a impedissem de sair. A prisão não era física e sim psicológica. (Foto: Marcus Abreu Magalhães)
Não havia grade, cadeado ou portão que a impedissem de sair. A prisão não era física e sim psicológica. (Foto: Marcus Abreu Magalhães)

"Ele não deixava eu sair. Me ameaçava de morte, me fazia de escrava. Não deixava eu fazer nada. Se eu saísse, ele me matava." Os 27 anos de casamento de Rosely se resumem a uma relação de posse, ciúme e cárcere privado. Não havia grade, cadeado ou portão que a impedissem de sair. A prisão não era física e sim psicológica. E quem tinha a chave? O marido que a ameaçava até se ela demorasse no mercado.

Diferentemente de outras reportagens, Rosely Cabreira Gonçalves não está mais na condição de vítima e logo pode e, fez por querer, mostrar a cara. Ao se deixar identificar, ela explica que o que já lhe aconteceu é passado, não mais presente e nem tampouco futuro. A violência não lhe atinge e blindada de empoderamento, ela permitiu que ilustrássemos sua entrevista com as fotos do juiz Marcus Abreu Magalhães, do ensaio para o Dia da Mulher que está exposto na Procuradoria Geral de Justiça do Estado, no Parque dos Poderes.

Foi a sobrinha de Rosely quem descreveu a vida da tia às assistentes sociais da Casa Abrigo, instrumento do Governo do Estado para acolhimento das mulheres em situação de risco de morte. A jovem denunciou o próprio marido e quando teve oportunidade, relatou o que havia ouvido da tia, uma vítima da violência há duas décadas.

"Um dia, desanimada, eu andei comentando com essa sobrinha minha e quando ela foi parar na casa de apoio, achou que minha história era mais grave que a dela. Ao invés de contar a dela, contou a minha e assim chegaram até mim", narra.

"Eu já não estava aguentando mais. Foi aonde eu me peguei desanimada de viver. Ele sempre falava para mim: 'se você largar de mim, ninguém mais vai te querer. Me ponhava para baixo, não deixava eu trabalhar fora e nem nada", descreve. Se ela trabalhasse, teria dinheiro e autonomia para deixar a casa. A vigilância aliada à dependência financeira resultava no cárcere. 

O primeiro contato com as assistentes sociais e psicólogas da Casa Abrigo trouxe à ela o questionamento para o qual ela já tinha resposta pronta. "Você quer continuar assim com ele? Desse jeito? Não".

Até para ir ao mercado, a mulher tinha minutos. Se ele estivesse no serviço e descobrisse qualquer saída dela, a briga era horrível. "Ele nunca me bateu, mas me ameaçava psicologicamente. Me torturava e eu me sentia encarcerada. 'Se você arredar o pé, eu te mato. E eu dizia: mata, para mim vai ser melhor morrer do que ficar com você''.

As frases ainda são como fantasmas que ecoam aos ouvidos de Rosely, uma mulher de 45 anos, com um sorriso lindo e tão reprimido durante anos. "Pra mim, se ele me matasse, ia ser um alívio", recorda. 

Quatro meses antes da denúncia, ela virou figura repetida nos hospitais. Sempre internada por conta de pressão alta. Escondia até dos médicos o drama que vivia, apesar de ser tão questionada. "A médica me perguntava: 'mas de novo a senhora aqui? Está tomando o remédio direitinho? O que está acontecendo?'", reproduz. "E eu? Eu tinha vergonha de falar porque", completa. 

Quando o marido bebia, a violência quase beirava a física, com ameaças de punhal. "Mas para onde eu ia? Sem dinheiro, sem nada? Eu não podia arredar o pé de casa", conta. No dia em que a assistente social e uma policial bateram à porta, ela pediu para que voltassem depois. Ele já estava para chegar. 

"Muitas vezes ele aparecia do nada. Só para ver se eu estava ali mesmo. Eu nem saía, só ficava limpando casa o dia todo para esquecer um pouco dele", descreve a rotina.

Entre a vontade de sair de casa e o desejo de sumir, Rosely combinou com a assistente social e a policial de ir no dia seguinte registrar queixa. Foi o tempo de arrumar roupas e partir para nunca mais voltar. "Foi uma luz que acendeu. Eu não pensei duas vezes e fomos no outro dia cedo e se mandamos de casa. Trouxe o que podia, minhas roupas e vim embora com fé e coragem", recorda.

Era 4 de maio e 2016, quando a casa a abraçou e o alívio chegou. "Você tem paz para a sua cabeça, tranquilidade, segurança e felicidade, só de saber que você está livre", descreve.

Hoje, a reflexão é a de que o casamento, 27 anos atrás, foi com um noivo totalmente diferente, que soube esconder bem quem era. "Se eles mudam? Não. Eles escondem, não mostram quem são, só depois que já conseguiram o que queriam", acredita.

A culpa acompanhou Rosely até a porta da Casa Abrigo. "Para falar a verdade, eu fiquei uns 20 anos entendendo que não estava certo o que ele fazia comigo. Mas até então, eu tentava arrumar o casamento, dizia para mim que ele não podia piorar, que vieram os netos, mas cada ano era pior e ele ficava mais agressivo".

O que a fez parar de carregar o sentimento foi ver que ela merecia a "vida dos outros", as quais julgava ser tão boa. "Via o marido das outras fazendo de tudo para agradar e ele só me maltratava. Foi acabando o amor e criando ódio".

Nas tentativas de separação, Rosely até disse que não precisava de nada, que deixaria casa e tudo com ele em troca da liberdade. "Oferta" negada. "Ele dizia: você nem pensa nisso. Se você sair daqui, eu te mato e mato quem você ama". 

Em julho, ela conseguiu um emprego e o primeiro salário foi recebido com a alegria de quem podia começar de novo, em uma casa só dela e livre. "Eu me pergunto por que não fiz isso antes? Depois que eu vim para a Casa, criei força mesmo. Se eu me sinto empoderada? Muito, bem mais forte do que eu era antes. Me senti mais segura do que eu quero e principalmente, do que não quero", enfatiza.

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Rosely, nome e rosto de uma mulher que se libertou da violência doméstica. (Foto: Marcus Abreu Magalhães)
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