Comportamento

No celular, trânsito ou fila, excesso de brigas tem ligação com a criação?

Neurocientista fala da frieza e falta de empatia que nascem de um modelo "falido e machista" sobre o que seria sucesso

Danielle Valentim | 06/01/2020 07:05
Lucas diz que rede social é quase impossível manter paciência. (Foto: Henrique Kawaminami)
Lucas diz que rede social é quase impossível manter paciência. (Foto: Henrique Kawaminami)

Onde a gente briga mais? Nos grupos de WhatsApp, em casa, no trabalho, nas filas ou no trânsito? Pelas ruas de Campo Grande, segundo os entrevistados, a demora das filas ou a desonestidade de quem passa a perna no colega da frente furando fila lidera a irritação.

Na busca de discutir a origem de tanta impaciência, o Lado B conversou com o neurocientista Ricardo Tiosso, mestre em psicologia comportamental, que diz não haver uma resposta exata para a pergunta acima, porém, pondera que todas as ações humanas, direta e indiretamente, são reflexos da criação.

Assim como não há uma resposta para a busca incessante pela individualidade - ação característica do avanço da globalização - a explicação para as brigas aleatórias, principalmente, com desconhecidos é complexa e exige níveis de atenção.

No entanto, Tiosso sempre se baseia na vivência clínica e garante que, nesse caso, as respostas podem partir de dois fatores. “Geralmente, eu encontro muitas pessoas que têm dificuldade com a habilidade social. Não somos ensinados a lidar socialmente com o outro. Isso vai acontecendo no nosso processo de ensino”, pontua.

Vinícius é entregador por aplicativo e usa a bicicleta para se locomover. (Foto: Henrique Kawaminami)

O entregador de aplicativo de refeições Vinícius dos Santos, de 18 anos, por exemplo, alega ser uma pessoa tranquila que foge de briga. “É raro eu perder a paciência e querer discutir ou brigar. Mas a enrolação de fila com certeza é o que mais irrita”, diz.

Já o acadêmico de Educação Física Lucas Campos, de 23 anos, garante que o lugar que mais briga é na rede social. “É quase impossível se segurar e manter a paciência sem discussão”, afirma.

As pessoas tem dificuldade com a habilidade assertiva garante Ricardo. "O primeiro fator é a dificuldade de expressar o quer e de compreender o que o outro está expressando. Entra a falta de empatia, de se colocar no lugar do outro. O segundo ponto vem da criação. Nós aprendemos que ou somos nós ou são eles. Mas nos esquecemos que no fim das contas estamos todos no mesmo barco”, explica Ricardo.

A zeladora de igreja Edvania Alegria dos Santos, de 42 anos, diz que pouca coisa a faz se irritar profundamente, mas a fila é uma delas.

“Esses dias fiquei indignada em uma fila de lotérica. Uma idosa nem entrou na minha frente, mas chegou e furou a fila preferencial. Ela furou a frente de outros idosos e me indignou. Não cheguei a dizer nada, mas fiquei bem irritada”, conta.

Mas é válido lembrar que - entre as ações praticadas e a maneira tal como fomos criados - há também falta de educação. A paciência é custosa, mas precisa ser praticada.

“Na fila, por exemplo, espera-se que todos obedeçam a regra. Mas em caso de demora ou desonestidade de alguém, serei agressivo só para expressar a minha vontade? Ou ficarei quieto? É claro, que ficar quieto é custoso, porque as pessoas não conseguem simplesmente virar e dizer com educação a quem “furou a fila” que todos no local estão esperando”, pontua Ricardo.

Edivania e o filho passeavam pelo centro. (Foto: Henrique Kawaminami)
Davi garante ser da turma da paz. (Foto: Henrique Kawaminami)

O fabricante de tanques Davi Damázio, de 46 anos, garante ser turma da paz. Segundo ele nada o tira da paciência. “A gente tem que analisar o que é bom para vida. Não me estresso com nada, não brigo com ninguém”, frisa.

Para decifrar a falta de empatia, Ricardo usa a mesma pergunta aplicada no consultório: “Quando você pensa em alguém poderoso, quem vem à sua cabeça? A maioria das respostas estão ligadas a homens, diretores de empresa, engravatados e frios. Um modelo de sucesso “bem” questionável.

“No contexto de modelo de sucesso ou pessoas que deram certo, geralmente, as pessoas pensam em um homem. Essa pessoa de sucesso, normalmente, é fria e passa por cima dos outros. Deixando de lado o viés de certo ou errado, a sociedade, basicamente, idolatra um psicopata. Mas nós seres humanos temos sentimento e a agressividade também traz um fardo. Mas vem do modelo que a gente segue ao longo do processo de desenvolvimento. Fomos ensinamos que esse é modelo de sucesso. Um modelo que não criticamos ou questionamos. Um modelo machista e sem empatia”, finaliza Ricardo.

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Briga dentro de uma universidade de Campo Grande. (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
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