Comportamento

Em cada esquina, uma história de quem se libertou de relações abusivas

Agressão e desrespeito levam mulheres à lutarem pela verdadeira felicidade. Como?

Anahi Gurgel | 08/03/2018 15:54
Cleonice na frente de seu barraco, na comunidade Bom Retiro, enquanto preparava pizza para esperar o novo amor. (Foto: Saul Schramm)
Cleonice na frente de seu barraco, na comunidade Bom Retiro, enquanto preparava pizza para esperar o novo amor. (Foto: Saul Schramm)

Conversar com mulheres que vivem em Campo Grande, nos seus mais diferentes universos de idade, classe social, temperamentos e rotinas, evidencia que o emponderamento feminino está verdadeiramente mais presente em suas vidas. Entretanto, em um 2018 onde a violência de gênero, e as diferenças salariais ainda imperam, fica evidente tambémn que as incontáveis conquistas são obtidas à custa de muita humilhação, sofrimento e luta. 

Cleonice, Camila, Isabel e Silene bem entendem sobre desrespeito. Poucos minutos de atenção ao que elas têm a dizer são suficientes para acessar recortes de histórias de desilusão, perdas, baixa auto-estima, descobertas, resiliências, mas também de oportunidades, auto-conhecimento e escolhas.

A diarista Cleonice de Oliveira, 47 anos, faz questão de contar como superou a separação do primeiro casamento. “Meu marido estava tendo um caso com minha irmã. Naquela época, eu tinha uma filha de 3 anos e estava grávida de 3 meses. Fiquei perdida, mas saí de casa e fui trabalhar. Me considero uma leoa”, define a moradora de um dos barracos da comunidade do Bom Retiro, oeste da Capital.

Cleonice na varanda, recebe equipe do Campo Grande News e conta que sofreu muito com relacionamento anterior. (Foto: Saul Scramm)

A lembrança dolorida vai além da traição. “Ele me desrespeitava. Na rua, apontava para outras mulheres e dizia que eu tinha de ser bonita como elas. Me chamava de feia, descuidada, me humilhava e ameaçava bater”, revela. 

Não foi fácil enfrentar tudo sozinha mas, hoje, o sorriso largo comprova a transformação em sua trajetória. Ela é só brilho nos olhos ao falar dos filhos, hoje com 24 e 31 anos, e do novo amor.

“Depois de tudo que enfrentei, encontrei um marido maravilhoso, que me valoriza, me acha bonita e incentiva a trabalhar. Até me traz flores. Eu nunca tinha recebido”, conta, correndo para a cozinha, onde preparava uma pizza para esperar seu companheiro já há 19 anos. 

Não muito distante dali, em uma casa modesta, chama atenção uma jovem lavando roupa na varanda e uma idosa sentada ao sofá. Juntas, elas escancaram, sem perceber, uma profunda mudança de percepção sobre conceitos de força, equidade de gênero e luta por direitos sociais. 

Aos 27 anos, Camila Albino dos Santos não trabalha e cuida da avó, que passa por problemas de saúde. Na casa, a jovem também mora com sua filha de 5 anos, e mais uma tia. São quatro gerações de mulheres convivendo juntas.

Isabel e a neta Camila sentadas no sofá de casa. Elas contam suas histórias de luta e resiliência. (Foto: Saul Schramm)

“Eu era casada, mas o pai da criança me bateu e me separei. Casei com outro, e ele também me deu um tapa, na frente da minha filha. Denunciei e fui embora. Não sou de aguentar esse tipo de coisa. Hoje estou ótima sozinha. A gente fica desiludida, moça”, explica.

Ao lado dela, dona Isabel Nóbrega, de 68 anos, escuta o relato da neta. “Seu nome é com s ou z?”, indaga a repórter. “Não sei escrever. Minha mãe proibia estudos para as meninas para não aprenderem a escrever carta para namorado", conta.

Eram em quatro irmãs e dois irmãos. Os homens podiam ir para a escola. "Mas isso não era maldade, era normal naquela época”, acredita.

Dona Isabel atualmente é viúva de um marido "que foi muito bom e compreensivo". Se preocupa bastante com um sério inchaço nas pernas, mas está feliz ao redor de suas meninas.

“Não sinto falta de homem na casa, nem vontade de aprender a ler e escrever. Já passou da hora”, sem deixar muito claro se é um lamento. 

Tenho ajuda? Para a psicóloga Carlota Philippsen, mulheres que passam por situações de agressões ficam fragilizadas, sendo difícil romper a barreira e procurar ajuda para sair desse ciclo. 

Silene, em frente à pizzaria onde trabalha, no centro da cidade. "Tive que reagir após traição". (Foto: Paulo Francis)

"Mas é importante se abrir para que outras mulheres possam identificar situações de opressão. Muita gente não entende como uma mulher passa por tantos absurdos e permanece na mesma condição", diz.

No caso da violência doméstica, de acordo com Carlota, a própria cultura coloca certos valores para as mulheres que tornam esse processo mais complicado.

"Muitas nem percebem que são vítimas e a vida delas vai se destruindo aos poucos. Estamos ganhando voz e apontando essas violências. Sozinhas, ficamos mais vulneráveis. Procurem apoio", orienta.

Submissão por opção? Ainda é um enorme desafio definir em texto o relato de Silene Mamede Ferreira, 40. Na frente da pizzaria onde prepara saladas e sobremesas, fala de um passado que deixou marcas mescladas de saudade e alívio.

Foi casada durante 13 anos. O marido se mudou a trabalho para Cuiabá com a promessa de voltar para buscar esposa e os 3 filhos. Por lá, conheceu outra pessoa e nunca mais voltou.

"Eu era extremamente submissa, fazia tudo por ele, pedia dinheiro até para comprar desodorante. Ele abandonou nossa família. Fui atrás dele no Mato Grosso e vi de perto sua nova vida, com nova mulher, novos filhos", recorda. 

Como foi doloroso! Ela superou a dificuldade "na marra", teve de procurar emprego, criou os filhos sozinha e até se casou novamente.

"Não tenho rancor. Meu ex gostou da outra; ninguem manda no coração. Eu estaria naquela vida de submissão até hoje e muito feliz. Estou bem com meu novo marido, minha vida". Durante o bate-papo, o olhar desviava para o passado onde empoderamento passava longe. "Aprendi a viver assim", conclui, toda independente.

Nos siga no