Comportamento

Corredor no Centro "esconde" homem que andou 12 dias na selva até chegar aqui

Paula Maciulevicius | 15/10/2014 07:00
Como passatempo, hoje Justo mantém um comércio numa portinha da 26 de Agosto. (Foto: Marcelo Callazans)
Como passatempo, hoje Justo mantém um comércio numa portinha da 26 de Agosto. (Foto: Marcelo Callazans)

No estreito corredor de bugigangas da Rua 26 de Agosto, bem no Centro da cidade, os cabelos brancos do comerciante paraguaio Justo Cuellar, de 77 anos, tem e muita história para contar. O comportamento meio desconfiado no primeiro contato demonstram que ele ainda guarda os resquícios de quem sobreviveu à duas ditaduras. Uma imposta pelo ditador Stroessner no Paraguai e outra pela natureza selvagem. Por 12 dias, Justo e um grupo de militares caminharam pela selva onde só se abre caminho com facão e foice. Do Chaco Paraguaio ao Brasil, o relato de um sobrevivente das torturas física e psicológica. 

Quando me apresentei ele só avisou que era preciso separar duas horas para ouvir toda a história. "Se você quiser saber tudo mesmo", alertou. Dito e feito. Foram 2h de relatos desde o nascimento dele, em 1937, em Coronel Bogado, no Paraguai, até a eternidade que durou a travessia da canoa do Rio Paraguai para o lado brasileiro.

"Se eu chorar, você me desculpa, viu?". Não era preciso se desculpar seu Justo. O senhor está no seu direito de derramar lágrimas ao voltar no tempo. Nascido em família humilde, o sonho dele quando menino era entrar no Colégio Militar paraguaio. Seu primeiro contato seria na campanha para eleger um presidente estudantil, quando ajudou o oficial Tenente Ferreira a vencer. Dele partiu o convite para adentrar no Exército. Em conjunto, veio a missão "sagrada". Aos 17 anos ele foi convidado pelo primo, para ingressar no complô armado para derrubar a ditadura de Alfredo Stroessner e implantar a democracia no País.

"Não tinha alternativa. Pensei: vou abandonar e ingressar para essa causa. Eu tinha que fazer o serviço dentro do Exército a fim de derrubar o Stroessner e eu entrei de corpo e alma", lembra. O complô tinha regimentos em todas as esferas: cavalaria, infantaria, marinha, aeronáutica e base aérea. A comunicação era clandestina, mas periódica e como toda história de revolução, o ataque foi adiado por duas vezes até que veio a ordem para o então Cabo Cuellar de que se não fugisse, iam derrubar o seu regimento. Ele escolheu ficar e na mesma madrugada foi capturado.

Os cabelos brancos têm e muita história para contar: de como Justo chegou até aqui. (Foto: Marcelo Callazans)

"O meio da disciplina na ditadura militar é, animalesco é a palavra que eu tenho", descreve. Ele foi entregue pelo braço direito, passou por sessões de tortura da banheira eletrizada, choques, agressões, dias sem comida e nem água e muito menos sem saber o que lhe estava reservado.

O castigo foi trabalhar para ampliar a estrada "Engave Santa" que unia a fronteira do Paraguai com a Bolívia. Eles foram conduzidos e vigiados por um grupo de seis militares da ditadura, um sargento e outros 4 ou 5 soldados. Na tarde em que Justo chegou com outros 20 militares, todos sentenciados à mesma sina, de morrer à míngua ali, o recado dado era de que eles precisavam dormir e descansar para o trabalho do dia seguinte.

Foram seis meses no Chaco Paraguaio. Decisão, segundo Justos, tomada sem qualquer defesa dos acusados. Para eles não havia alimentação e nem as mínimas condições de higiene. A comida era chá com bolachas no café e feijão e canjica no almoço. O banho se restringia a 1 litro de água. A lida era de sol a sol num ambiente nada civilizado. "Fomos atacados por duas vezes, eram tribos de índios selvagens".

Entre si, o grupo de condenados, decidiu que era morrer ou morrer. "Dia 25 de Agosto, às 12h do ano de 1957, em uma combinação relâmpago e certeira dominamos todos os guardas compostos, eram seis militares, o tenente Lugo, dois sargentos, um cabo e dois soldados", narra. Justo, como o menos graduado, apenas cabo, viu o então tenente tentar uma proposta: de que não daria parte deles ao governo desde que eles voltassem atrás da ideia. "Com a experiência que carrego e conhecimento deste lugar, atravessar a selva até o rio será um suicídio coletivo", reproduz Justo as palavras que ouviu aquele dia.

O grupo seguiu andando. Amarram os cinco em árvores e levaram consigo um deles. "Para voltar e desamarrá-los. Essa atitude foi o que nos ajudou para conseguirmos asilo político. Não derramamos nenhuma gota de sangue e nem maltratamos fisicamente os guardas", ressalta.

"Começa agora a caminhada em busca da liberdade, carregamos todos os meios de locomoção, cavalo, carreta e boi. Andamos a noite inteira para no dia seguinte alcançar a chácara de um amigo que tínhamos conseguido meses antes". O amigo a que se refere era um cavaleiro que nos tempos de castigo levou medicamentos e mantimentos até o campo.

"Amparado ao teu sagrado verde e amarelo", ele agradece, de coração, ao Brasil. (Foto: Marcelo Callazans)

Na época em que armas valiam mais do que dinheiro, essa era a moeda de troca de Justo Cuellar. A chácara foi o único ponto de referência durante a caminhada que durou 12 dias, em meio à selva, onde para se andar era preciso abrir espaço na mata com facão e foice.

Durante o dia, eles revezavam a cada 30 minutos quem iria à frente, abrindo caminho. Nos primeiros passos, eles já sacrificaram o cavalo que o acompanhava. "Nossa comida já é pouca, seria de grande valia sacrificá-lo para saciar nossa fome mais para frente, alguns concordaram, já estavam fazendo fogo, ninguém tinha coragem de matá-lo, até que se escutou uma voz: seja o que Deus quiser. E detonou um tiro mortal na cabeça do cavalo. Rapidamente carneamos. Cada um pegou um pedaço".

Justo relembra que a recomendação era de economia total de água. "Isso num calor que era cada vez mais intenso, de 30 a 35 graus". Sem água para beber, eles só molhavam os lábios, ora com gotas de suor, ora pelas lágrimas, ora da água mesmo.

Em uma determinada noite, os pensamentos invadiram a cabeça de Justo. Disciplinado no exército, ele sabia que sacrificar um soldado para salvação do grupo é aceitável. "Ao meu lado, o cabo era um negro musculoso. Eu tratei de me afastar e foi a noite mais longa da minha vida, porém amanheceu e tratamos de aproveitar ao máximo a frescura da manhã".

Sem água, sem comida, sem motivação. A substituição de quem conduzia a foice já havia caído, de 30 para 15 minutos. "Rezamos e pedimos à Virgem de Caacupé a nossa salvação. Em questão de segundos acontece o milagre. Se formou uma nuvem e veio a cair um aguaceiro farto. Não tem como descrever a fisionomia de todos: gargalhadas, lágrimas, choros, prantos. Já com mais disposição, continuamos a terrível andança".

É preciso traçar aqui um parêntese. O relato todo é sempre dito no presente. Na memória de quem viveu a crueldade da ditadura paraguaia e na própria natureza não existe passado que seja remoto. Mesmo que a história tenha ocorrido 57 anos atrás.

Depois da chuva, o grupo pegava algumas folhas verdes para se alimentar. "A gente comia e tinha a sensação de ser algo tão gostoso. De vez em quando algum subia à uma árvore para ver se avistava claridade ou sinal de vida", relembra.

O milagre aconteceu, mas foi passageiro diante de tanto chão ainda pela frente. Sem nada de novo, o estômago provocava dores que só quem andou por comida e liberdade sabe expressar. "Assamos uma tartaruga. Dividimos em 20 pedaços, sorte que tínhamos um pouco de sal, foi um churrasco temperado".

Quando eles pensaram em desistir, a subida na árvore mostrou um campo aberto, onde se podia ver a corrida mansa do Rio Paraguai. "Não existem palavras nem frases para expressar a alegria que tomou conta de todos. O outro lado era o tão sonhado Brasil", recorda Justo. O calendário marcava dia 6 de setembro. O bando avistou uma casa e uma canoa, aos donos se apresentaram como homens de bem e pediram ajuda para atravessar o rio. "Na canoa cabia só metade do grupo. A travessia e a volta representavam uma eternidade, até que finalmente embarcamos, já era mais de meia-noite".

O outro lado era Porto Murtinho. De lá foram escoltados pelo Exército até o quartel, onde receberam comida, cuidados médicos e assistência que tanto desejavam e lhes faltou naqueles dias. Ao chegar no Brasil eles entraram com o pedido de asilo político, concedido por Juscelino Kubitschek.

Um mês depois, Justo Cuellar chegou a Campo Grande, de onde nunca mais saiu. "E no dia 8 de outubro, visitamos o jornal Correio do Estado, fomos manchete: 'Fugitivos do campo de concentração do Chaco Paraguai' e assim continou uma longa reportagem que até hoje guardo com muito carinho e veneração.

Aqui Justo trabalhou na parte gráfica do jornal, se casou, teve oito filhos, netos e bisnetos. Ao final da ditadura no Paraguai, ele daqui comemorou. "O meu sacrifício eu senti que foi coroado com êxito é uma longa história e onde eu quero chegar é que eu gostaria de externar o meu terno agradecimento a esse povo maravilhoso, hospitaleiro, que nos recebeu de braços abertos. Nós não fizemos nada mais do que procurar a nossa liberdade", resume.

"Amparado ao teu sagrado verde e amarelo", ele agradece, de coração, ao Brasil. Ao final da reportagem ele pergunta se terá ibope e pede ainda um segundo capítulo se a aceitação for boa. É que na luta contra a ditadura do Brasil ele também teve participação. Hoje aposentado, ele gosta de engatar conversa e está sempre no ponto onde é seu passatempo. Aposentado, vende as bugigangas para se ocupar e contar, a quem sabe um bom ouvinte, o seu passado no Chaco.

Chegada do grupo foi coberta pelo jornal. Recorte está guardado até hoje na parede da casa de Justo. Há 57 anos. (Foto: Marcelo Callazans)
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