Comportamento

Corpinho castigado, mas de uma valentia sem tamanho, Matilde era dama do baile

Lenilde Ramos | 19/04/2015 08:24
Corpinho castigado, mas de uma valentia sem tamanho, Matilde era dama do baile

Quando trabalhava no São Julião, eu não via a hora de terminar o expediente, para conversar com os velhos à sombra das mangueiras e tocar sanfona com os jovens, no bolicho.

Os bailes na antiga colônia de hansenianos fizeram história e personagens memoráveis, como a Bugrinha, apelido da Matilde, corpinho castigado, mas de uma valentia sem tamanho.

A doença tinha deixado só os toquinhos nas mãos e, pelo jeito que mancava, os pés também estavam bem comprometidos.

Mas Bugrinha era a rainha dos bailes e os cavalheiros adoravam dançar com a dama que enfeitava os cabelos com uma flor.

Era noite de São João e ela estava linda, mesmo com o nariz tortinho e as cicatrizes que bordavam seu rosto. Eu fazia parte dos músicos baileiros e dali do palco via Bugrinha dançar e pensava: "Como é que ela aguenta?".

Quando o baile acabou, os internos foram saindo na noite fria e estrelada e Bugrinha foi para o seu quarto, no pavilhão 32, das mulheres.

Ainda fiquei no salão para ajeitar umas coisinhas, quando ouvi uma voz aflita que gritava: "Corre aqui, corre aqui que a Bugrinha está passando mal".

Fui no instinto, porque não sou enfermeira nem nada e falei: "Vou ficar até alguém chegar" e entrei.

Bugrinha, sentada em uma cadeira, gemia e apontava os pés, ainda com botas ortopédicas e fazia sinal para alguém tirá-las.

Me ajoelhei na penumbra e, só com a luz que entrava pela janela, comecei a desamarrar os cadarços. Quando afrouxou, vi o sangue na meia e, à medida que puxava o calçado, fui desnudando os pés destroçados e ensanguentados da grande dama.

Foi quando dei por mim ali de joelhos, diante daquela cena, entre o medo e o frio na espinha e comecei a entender o valor de uma vida.

A enfermeira chegou, levantei meio zonza e botei marcha no rumo da minha casa e no rumo da minha vida

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