Comportamento

"O primeiro cabeleireiro" da cidade hoje vive de carroça e dando trato na Arlete

Paula Maciulevicius | 17/10/2013 06:24
Marquinhos e Arlete. De cabeleireiro à charreteiro por opção. Ele quis se 'desformatar'. (Fotos: Simão Nogueira)
Marquinhos e Arlete. De cabeleireiro à charreteiro por opção. Ele quis se 'desformatar'. (Fotos: Simão Nogueira)

Aos 16 anos ele ingressou na carreira e foi o primeiro cabeleireiro da cidade, garante. A fama e a baixa estatura deram a ele o apelido de ‘Marquinhos’. Depois de mais de três décadas se dedicando às madeixas, ele hoje vive numa charrete e só cuida da vaidade de Arlete, Estrela D’Alva e Auxiliadora. As três éguas que tem pela frente a missão de humanizar o trânsito.

“Na época não tinha outro cabeleireiro. Só eu, o único homem”, conta. Foram mais de 30 salões de beleza na capital, em São Paulo, Rio, Brasília e na Bahia. Pelas mãos dele passaram artistas e misses. Marquinhos era ligado a grandes cabeleireiros e também às produções da Rede Globo. O auge veio depois de uma reportagem de uma revista da editora Abril, no salão onde ele era assistente, em São Paulo, do primeiro cabeleireiro a trazer a técnica de ‘escova’ ao Brasil.

Filho do dono da Cantina do Álvaro, restaurante famoso na rua Calógeras, a propaganda ele faz até hoje. “Foi a melhor feijoada popular durante 20 anos”. Mas os restaurantes self service e por quilo chegaram e o pai, conforme ele relata, não se adaptou à nova fase.

Marquinhos pode até ser figura conhecida, mas o Lado B a ele não havia ainda se apresentado. Quando ligo para saber onde encontra-lo a resposta já anuncia o tom da entrevista. “É muito oportuno. E eu tenho que prestar contas à sociedade”. Desligo curiosa. Prestar contas do quê?

É na avenida Fernando Correa da Costa que ele para a charrete para contar um pouco da vida. “Eu estou treinando ela para uma atividade de humanização no trânsito. Sou capelão hospitalar”. É assim que ele e Arlete se apresentam. A campanha que Marquinhos prega é contra a pressa no trânsito e nos próximos dias, Arlete vai levar a placa “faça uma prece antes da pressa”. Segundo ele, uma transmissão do recado que o SUS dá, diante da falta de leitos.

Por trás das roupas e da feição mal cuidada, ele garante ter 60 anos. Mas vive como se já tivesse nos 70.

Sorridente, de vocabulário vasto e com 60 anos. As palavras que saem da boca mostram a cultura e educação que Marquinhos teve. Por trás das roupas já gastas, das mãos encardidas e a barba por fazer há quase uma década, um homem que por vontade própria se desformatou dos padrões. De longe, um senhor numa charrete com uma bandeira do Brasil e um capacete de acessórios. De perto, um maluco sonhador que preferiu antecipar a velhice.

“Deixei a barba crescer para usufruir da grandeza da terceira idade agora. Hoje eu tenho a aparência de 70 anos, porque não sei se vou chegar até lá vivo. E a barba, ela impõe uma condição diferenciada”, explica.

Há seis anos ele mora na Chácara na região dos Vendas. Se intitula guardião do Vale Vendas, mas admite rindo, que é chamado do Velho do Vale Vendas. “Sou responsável pela ordem e pela paz. Pode ver que lá acabou tudo. Sou vigilante, mas faço o trabalho de capelania”.

A formação, segundo ele, veio de uma educação continuada depois de um tratamento de fígado, a qual foi submetido. No hospital, começou a desenvolver trabalhos de auxiliar terapêutico, incluindo contar histórias. Se é ou não verdade, não entro no mérito de questionar quando ele diz que deu por encerrada a vida.

“Percebi que a maior riqueza que a pessoa tem é usufruir o tempo para nós mesmos. Vendi o salão e dou graças a Deus, senão hoje eu podia estar com cirrose, não teria tido a mínima chance de ser o que sou hoje”.

Deixar de ser cabeleireiro levou tempo. Pela clientela ele nunca teria fechado as portas, por isso escolheu se despir da vaidade para qual sempre trabalhou e se trajou de maltrapilho. “Se as pessoas vissem que eu não me cuidava, saberiam que não podia cuidar delas também. Deixei o cabelo, a barba e vesti essas roupas para que as pessoas percebessem. Aí eu comecei a perceber que eu nunca vivi pra mim”.

“A partir do momento que começo a me resgatar, começo a sentir essência, isso que faz as pessoas se sentirem felizes”, diz Marquinhos.

No meio da rua, em meio ao trânsito, motoristas e ciclistas que chegaram a parar para tentar ouvir o que a gente conversava, que tudo passou a fazer sentido. O tratamento, se veio de um vício ou não, também não aprofundo a questão, mas Marquinhos atribui a felicidade à doença.

“Daí então eu percebi que o mundo da estética era um mundo de faz de conta. Para ser teólogo não dava para ser conivente com a vaidade alheia. Eu estou vivendo acampado para poder sobreviver com o mínimo. Se as pessoas me chamam de maluco? Chamam sim, de maluco beleza, porque eu consegui me desformatar e saí vencido”.

Ele diz que o que está fazendo é prestar atenção no que fazer da vida na terceira idade enquanto pode. “A gente tem que criar o hábito de usufruir da vida, eu estou usufruindo a minha caduquice com lucidez”. Penso eu, será que ele não tem toda razão? A gente é obrigado a esperar a velhice chegar para vive-la? É o que eu fico me perguntando até agora.

A desformatação dele foi deixar de lado um emprego formal, uma vida de horários, correria, compromissos e atrasos. A rotina que a maturidade traz sem que ninguém tenha autorizado. “O mínimo necessário no despertar de manhã a pessoa não tem. Ela não tem o direito de refletir, de sonhar, porque já tem que sair correndo”.

Foi pela charrete que ele diz ter assumido a entidade que é hoje. Me pergunto se ele é feliz. A resposta é que sim. “A partir do momento que começo a me resgatar, começo a sentir essência, isso que faz as pessoas se sentirem felizes”.

Sobre a entrevista ser oportuna, a primeira frase que Marquinhos soltou enquanto ainda nos falávamos por telefone, ele conta que precisa prestar contas à sociedade porque é só sair de casa que a população chama a Polícia.

“Toda vez que eu saio pelas ruas as pessoas ligam direto pra Polícia. São desinformadas. Tenho momento certo de sair e não é proibido. Não tem cadeia e nem hospital para todo mundo e ninguém faz nada. A égua desperta nas pessoas que estão com pressa algo a refletir. 90% delas se manifesta assim, outros 10% só falta me bater, falam que eu estou mal tratando a égua. Essas são as pessoas mais carentes da equoterapia, do lazer. São as que tratam empregados pior que animais e muitas vezes fazem isso para mostrar que tem sentimentos para quem está do lado, mas já descem querendo me bater. Olha que contradição?”

A maneira de viver a vida para si, mesmo numa charrete, dá a ele bem menos do que os 60 anos que tem. Marquinhos vive de pequenos reparos e contar histórias. E o nome mesmo é Marcos Aurélio dos Santos. 

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