Interior

Carros apodrecem ao relento enquanto pacote anticrime “patina” na Justiça

Nem pacote anticrime consegue acelerar leilões de veículos que lotam delegacias

Helio de Freitas, de Dourados | 03/03/2021 15:58
Carros apreendidos se deterioram estacionados em rua ao lado do DOF (Foto: Divulgação)
Carros apreendidos se deterioram estacionados em rua ao lado do DOF (Foto: Divulgação)

Em vigor há um ano, completado em janeiro de 2021, o chamado pacote anticrime provocou mudanças no Código Penal, Código de Processo Penal e na Lei de Execuções Penais, como forma de ampliar as ações contra o crime no País.

Incluída no pacote sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019, a chamada “alienação antecipada dos bens” foi aprovada pelo Congresso para acelerar a venda de veículos envolvidos com o tráfico de drogas.

Só que em Mato Grosso do Sul a medida ainda patina, enquanto pelo menos 7.500 veículos abarrotam pátios de delegacias e até ruas próximas às sedes de organismos policiais. Muitos estão há anos ao relento, sendo deteriorados pela ação do tempo e valendo menos a cada dia exposto ao sol e à chuva.

De junho de 2020 a março de 2021, apenas 121 veículos foram leiloados no Estado. O problema foi tema de reunião da cúpula da segurança pública de Mato Grosso do Sul com o secretário nacional de Políticas Sobre Drogas do Ministério da Justiça, Luiz Roberto Begiora, hoje (3) em Campo Grande.

Policiais ouvidos pelo Campo Grande News afirmam que o principal motivo para a superlotação dos pátios é a demora do Poder Judiciário em determinar a alienação antecipada dos bens, embora a medida faça parte de lei em vigor há um ano.

A sede do DOF (Departamento de Operações de Fronteira) é um dos locais mais abarrotados de veículos. Por falta de espaço no pátio, carros e caminhões já ocupam ruas próximas ao prédio, localizado na Rua Coronel Ponciano. No local também funciona a Defron (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Fronteira).

O diretor do DOF, coronel Wagner Ferreira da Silva, afirma que só no pátio interno e no entorno do departamento existem pelo menos 300 veículos entre carros e caminhões. Só nos dois primeiros meses deste ano foram mais 90 apreendidos. 

O oficial da PM confirma a demora para autorização da alienação antecipada por parte do Judiciário. “Isso acarreta na quantidade de veículos em nossos pátios, o que gera riscos à saúde pública, aumento de custo para controle, além de deterioração do bem apreendido”.

Antes do pacote anticrime, o destino dos veículos só era decidido ao final do processo. Na sentença, o juiz decidia pelo perdimento do bem ou devolução ao proprietário ou a “terceiros de boa fé”.

Como os processos são sempre demorados, a medida incluída no pacote anticrime permitiu antecipar a venda desses bens através de leilão mesmo durante o curso da ação penal. O dinheiro arrecadado fica depositado em conta judicial até a decisão final. Se o acusado for inocentado ou o bem liberado, o proprietário recebe o dinheiro da venda.

Em tese, a medida deveria acelerar a limpeza dos pátios, mas na prática a situação é bem diferente. Com a demora da Justiça em autorizar a alienação antecipada e diante de tantas apreensões de veículos, principalmente com droga, o número de carros e caminhões nesses locais aumenta a cada dia.

Carreta da carga recorde de maconha divide espaço com viaturas (Foto: Adilson Domingos)

Polícia Civil – Na Polícia Civil a situação não é diferente. No prédio onde funcionam a Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário) e a 1ª Delegacia de Polícia, na Rua Cuiabá, os veículos apreendidos ocupam toda a parte da frente e até calçadas de ruas próximas.

Situação inusitada aconteceu na delegacia, no mês passado. Por falta de espaço para ser guardada, a carreta bitrem com a carga recorde de maconha (29,2 toneladas) apreendida por policiais rodoviários federais de Dourados foi deixada estacionada em frente à delegacia.

Dez dias depois a polícia descobriu que traficantes estavam furtando a carga. Pelo menos 300 quilos de maconha foram retirados da carreta. O furto obrigou a Justiça a determinar a incineração imediata da droga. A carreta, avaliada em R$ 200 mil, entrou na lista dos veículos que esperam decisão judicial para ir a leilão.

“Nem para ferro-velho” – Para o advogado criminalista douradense Marcos Santos, o abandono desses veículos em pátios de delegacias da Polícia Judiciária e até mesmo da Receita Federal é desserviço à sociedade.

“Primeiro porque viram locais de proliferação de roedores, insetos e animais peçonhentos, além de serem criadouros para o mosquito Aedes aegypti. Segundo, porque quando são levados à venda após a sentença penal condenatória, estão tão deteriorados pelo tempo que já não têm quase nenhum valor de mercado. A grande maioria acaba sucateada, tem peças furtadas e não serve nem para ferro-velho”, afirmou. 

Segundo ele, o Poder Judiciário precisa tirar do papel de forma mais efetiva a alienação antecipada, prevista na lei justamente para garantir a preservação de valor desses bens.

“A legislação é clara ao definir que a medida será decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou por solicitação da parte interessada. Em vez de ficarem expostos ao tempo, se deteriorando e oferecendo riscos à população, esses veículos deveriam ser alienados de forma rápida e o dinheiro depositado em conta judicial para ser devolvido ao acusado, em caso de absolvição, ou transferido para programas de segurança pública”, avaliou.

Conforme o criminalista douradense, a Constituição Federal define que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal e após sentença penal condenatória com trânsito em julgado. “Agora, imagine a situação em que uma ação penal pode demorar três, quatro, cinco anos até chegar à decisão que não cabe mais recurso. O bem apreendido e exposto ao tempo já não terá qualquer valor”. 

Marcos Santos explica que a antecipada se justifica em situações excepcionais, sobretudo quando não restar dúvida de que o veículo apreendido é fruto de ilícito penal.

“O parágrafo primeiro do artigo 4º da Lei 9.613/1998 já previa, antes mesmo do pacote anticrime, que a alienação antecipada deverá ser realizada para preservação do valor dos bens. O que vemos hoje é que as autoridades do Poder Judiciário e o próprio Ministério Público não têm dado a devida atenção a essa questão, deixando delegacias abarrotadas de veículos apreendidos”, afirmou o advogado.

TJ – O Campo Grande News procurou o Tribunal de Justiça para perguntar se existe relutância por parte dos juízes estaduais em utilizar a medida prevista no pacote anticrime.

A assessoria informou que o Tribunal havia se manifestado sobre o assunto na reunião do presidente da Corte Carlos Eduardo Contar e do corregedor-geral de Justiça Luiz Tadeu Barbosa Silva com o secretário estadual de Justiça e Segurança Pública Antonio Carlos Videira, no dia 19 de fevereiro.

Na reunião, da qual participou também o coronel PM Edilson Osnei Nazareth Duarte, superintendente de Segurança Pública e Políticas Penitenciárias, Videira manifestou preocupação com a lotação dos pátios com veículos apreendidos e citou insatisfação dos moradores do entorno, risco de proliferação do mosquito da dengue e o prejuízo do erário com a segurança desses veículos.

“Os juízes não têm medido esforços no sentido de adotar de forma célere o procedimento de leilão. Afinal, antes do recebimento de um veículo sucateado pelo tempo, melhor que se priorize o leilão, com o valor líquido arrecadado depositado na conta judicial”, disse Luiz Tadeu, naquele dia.

Ainda na audiência, o desembargador anunciou que entraria em contato com juízes do setor para adotar medidas para diminuir o número de veículos nos pátios das delegacias do Estado. A reportagem procurou o Ministério Público de Mato Grosso do Sul, mas até o fechamento deste material o órgão não havia se manifestado.

Caminhões que carregavam drogas ficam anos ao relento até decisão judicial (Foto: Divulgação)


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