Posse de arma coloca juízes em lados divergentes em Campo Grande
Juízes do Tribunal do Júri e de Execução Penal tem opiniões divergentes, mas análises que se complementam
Controvérsias cercam o decreto nº 9.685 de 15 de janeiro de 2019, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, que flexibiliza a posse de armas de fogo no Brasil, responsáveis por 71% dos homicídios no País. Por aqui, juízes consultados pelo Campo Grande News se contrapõe, mas também se complementam em relação a essa flexibilização.
Ainda é cedo para projetar um crescimento da venda dos equipamentos, já que a compra e o processo de posse custa em torno de R$ 5.000,00, porém lojas já registraram aumento de consultas. Pelo decreto, agora o cidadão pode ter a posse de até 4 armas de fogo, mas a maior mudança está na regra para a compra, que exigia uma avaliação da Polícia Federal sobre a necessidade da posse da arma.
Perigo - Para o juiz Carlos Alberto Garcete, da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande, “é uma medida extremamente perigosa para a sociedade. Vai fomentar a violência e o dolo”, diz ele, que atua no judiciário há 10 anos e é professor de processo penal há 15. Segundo ele, a grande maioria dos casos de homicídios são causados pelo “chamado criminoso eventual, como dito no direito penal”.
“É aquele sujeito que compra arma de fogo e mantém em casa e, no primeiro momento em que ele perde a cabeça, em momento de elevada alteração emocional, a arma de fogo é o elemento deflagrador da tragédia”, alerta. “Talvez todos nós, se tivéssemos um instrumento desses, seríamos capazes de fazer uma besteira. Tenho processos de pessoas de todos os níveis sociais”, adverte.
Razoável - Já o juiz Mário José Esbalqueiro, da 2ª Vara de Execução Penal, tem uma visão favorável à flexibilização do posse de armas no Brasil, pois pode coibir a criminalidade. “Em curto espaço de tempo creio não não vai piorar a situação. O que temos de números, com o Estatuto do Desarmamento, o fato de proibir a posse de arma não deu resultado esperado. Os homicídios subiram mesmo assim”, justifica.
Para ele, o reflexo positivo deve vir com o tempo: “É medida razoável. Só vamos ver resultado depois de anos”, analisa. “O que vemos nos crimes com uso da arma de fogo é que 95% são praticados com armas ilegais”, informa ele sobre os casos que passam em suas mãos.
Avaliação psicológica - “Para o cidadão de bem, que não tem processo, passou por exame psicológico e de aptidão, a legislação permite que tenha arma para se defender. As restrições são um tipo de controle”, avalia Esbalqueiro.
Já, para Garcete, os testes não garantem o controle emocional de quem vai pleitear a posse de uma arma. “Não acredito nos exames psicotécnicos, porque são falíveis. Na vara de homicídios, vejo vários exames de insanidade mental e vejo laudos de psiquiátricos que dizem que são problemas altamente complexos e difícil detecção”, declara.
Punição - Tendo em vista a legislação americana que é permissiva tanto quanto à posse como ao porte de arma, os dois magistrados teceram comparações com a realidade brasileira. Nos Estados Unidos, os diversos estados possuem regras de posse e porte diferentes e punições distintas.
Garcete leva em consideração o rigor das penas, segundo ele, nos estados em que os castigos são mais brandos, os condenados devem cumprir pelo menos trinta anos de prisão. Outros estados tem a prisão perpétua e até a pena de morte para homicídios.
“O cidadão americano tem direito de se defender. Pelo sistema americano, de fato, pode-se comprar arma em qualquer estabelecimento, mas o sistema tem tolerância zero e tem penas altíssimas. Ele (sistema americano) te dá (o direito de posse e porte) mas joga uma responsabilidade pesadíssima”, afirma, o que, segundo ele, o que não ocorre no Brasil.
Na opinião de Esbalqueiro, não é o tamanho da pena que pode coibir o crime, mas a certeza da punição. “Temos uma das legislações mais ‘boazinhas’ do mundo, a nossa é a das mais tranquilas. A legislação tem que ser repensada em outros pontos. O que assusta não é tanto o tamanho da pena. Se é 20 ou 15 anos, não faz diferença. Mas se sabe que vai ser condenado, faz diferença. A impunidade gera mais crime”, defende.
Para diminuir a impunidade, Esbalqueiro acredita que é necessária toda uma reformulação nas diversas fases de um caso criminal. “Tem que ter melhor estrutura de investigação policial, agilidade na justiça, o que não é julgar rápido, o tempo é necessário. Acho indispensável cumprimento de pena após condenação em segunda instância”, avalia. Ainda, Esbalqueiro acredita que o problema do Brasil seja cultural.
“Se comparar com outros países, Japão tem índice baixo de criminalidade e não tem posse de arma. Na questão americana, tem população maior, tem posse liberado e índice de criminalidade menor que o do Brasil. Se a arma gera mais crime ou menos crime é uma premissa falsa. É um problema cultural. Temos um sério problema cultural. Temos que aprender que o que ‘é errado é errado’, ‘não posso dar jeitinho’, ‘ser corrupto’. Ficamos vendo situações como se a culpa fosse da arma”, adiciona.
Legítima defesa - Adicional às comemorações de parte da população em relação à flexibilização da posse de armas, Garcete alerta algo que a pode habitar o consenso popular. “Dá a entender que, com a posse, que se precisar, pode usar para a defesa. É importante saber das consequências ainda que você ache, na sua cabeça, que está usando em legítima defesa. Assim que atirar em alguém, automaticamente vai responder a um inquérito policial”, ressalta o juiz.
Garcete explica que, inevitavelmente, o ato se torna em um inquérito policial e quem atirou necessariamente deverá comparecer em delegacias para prestar depoimentos, o que pode levar meses. De acordo com o juiz, o processo é analisado pelo Ministério Público, que solicita a um juiz o arquivamento do inquérito, mas o magistrado pode entender que a situação de legítima defesa não está clara.
Então o Ministério Público oferece denúncia contra quem disparou a arma de fogo, que deverá responder a uma ação penal no Tribunal do Júri e poderá ser levado a julgamento popular. “Isso não tem sido mostrado. Todos estão comemorando que pode ter arma, mas não sabem das consequências”, alerta.