Capital

Em ruas com suspeita de obra fake, moradora garante: “Viu cascalho faz 10 anos"

A via em pior condição de manutenção foi encontrada no Jardim Carioca

Aline dos Santos | 23/06/2023 13:29
"Está precisando de cascalhamento, limpeza. Aqui, quem limpa sou eu", conta Nair, 73 anos. (Foto: Marcos Maluf)
"Está precisando de cascalhamento, limpeza. Aqui, quem limpa sou eu", conta Nair, 73 anos. (Foto: Marcos Maluf)

Com 480 metros, a Rua Coronel Athos P. da Silveira, no trecho entre a Juarez Lucas de Jesus e Vinicius de Moraes, Jardim São Conrado, surge no papel como destinatária de 558 m³ (metros cúbicos) de revestimento primário, executados pela empresa Engenex Construções.

Na prática, a via é ladeada por matagal, tem largura estreita, incompatível com a passagem de máquinas e sem qualquer revestimento. “Só teve cascalho quando fizeram a rua, há mais de dez anos. Ano passado, só podaram as árvores. A rua está precisando de cascalhamento, limpeza. Aqui, quem limpa sou eu. Às vezes, passavam uma patrolinha, mas isso faz muito tempo”, diz a aposentada Nair Ferreira Bernardes, 73 anos, que mora há cinco décadas no São Conrado. 

Com casas de frente para o matagal, os moradores tentam manter as margens da rua limpa, numa tentativa de conter o descarte irregular de lixo. A expectativa é um dia trocar a via de terra por pavimentação. “O asfalto está tão pertinho”, diz Nair. 

 Rua Coronel Athos P. da Silveira, via sem conservação e ladeada pelo mato no São Conrado. (Foto: Marcos Maluf)

A reportagem percorreu nesta sexta-feira (23) ruas que aparecem com suspeitas de irregularidades no relatório da Operação Cascalhos de Areia, realizada no dia 15 pelo MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) contra a Prefeitura de Campo Grande. 

Na Rua Vitória Zardo, entre a Valter Gustavo Escheneek e Praia Grande, há resquícios de revestimento primário na via, que tem posição mais central no Jardim São Conrado. 

O morador Rafael Lopes, 35 anos, conta que houve obra no ano passado, mas acredita que a maior parte do cascalho já tenha sido levada pela água da chuva. 

Rua Vitória Zardo, que recebeu uma carga de caminhão truck a cada 28 metros. (Foto: Marcos Maluf)

Já o relatório da investigação destaca o volume de material aplicado nos 702 metros desse trecho da Vitória Zardo: uma carga de caminhão truck (18 m³) a cada 28 metros de distância. 

Noutra esquina da rua, que não passou pela inspeção do Ministério Público, a reportagem ouve a reclamação do cadeirante José Gerado da Silva Siqueira, 64 anos, que cobra obra para fechar os buracos da via sem asfalto. 

“Moro aqui há 20 anos e sempre peço para a Secretaria de Obras para passar a patrola. Tenho que andar em zigue-zague por causa dos buracos”, diz Siqueira. 

"Moro aqui há 20 anos e sempre peço para a Secretaria de Obras para passar a patrola", diz Siqueira (centro). (Foto: Marcos Maluf)

Vendedor ambulante, ele circula pelo bairro vendendo pares de meia, pomada “canela de velho” e xarope. Siqueira é mais um a pedir asfalto. “Certeza que isso aqui já é asfaltado em Brasília”, diz, recorrendo ao bom humor para lidar com mais uma suspeita de desvio de dinheiro público, já comum no cotidiano do campo-grandense. 

Rua Sílvio Aiala tem erosão, mato alto e muito lixo descartado. (Foto: Marcos Maluf)

A pior de todas – No Jardim São Conrado, a Rua  Sílvio Aiala Silveira, entre a Avenida Cinco e via sem saída, é a que surge em piores condições. Ladeada por casas do lado esquerdo e muro do lado direito, a rua tem erosão, muito lixo e entulhos improvisando um revestimento primário.

No papel, a Sílvio Aiala Silveira passou por medidas de conservação em julho do ano passado. O contrato com a Engenex foi para “limpeza, conformação e aplicação de revestimento primário”. 

Maria e Israel limpavam terreno ao lado da Rua Sílvio Aiala Silveira. (Foto: Marcos Maluf)

“A fundura dos buracos já mostra que ninguém veio fazer obra. Se teve obra, só levaram o dinheiro”, diz Israel de Barros, 50 anos. Na manhã desta sexta-feira, ele fazia a limpeza de um terreno ao lado de Maria Messias Gonçalves, 71 anos, proprietária do lote. 

“Morei aqui por nove anos. Nem tinha o muro, eu cuidava daqui. A gente sentava embaixo das árvores no fim de tarde”, diz, consternada diante de tanto lixo acumulado no matagal. Hoje, antes de começar a limpeza, ela teve que remover um animal morto. 

Também no Jardim Carioca, mas na Rua Elis Regina, Osvaldo Luiz Lopes Viana, 59 anos, diz que no ano passado só “rasparam” a via. 

A suspeita de desvio de dinheiro público é derivada de contratos com a Engenex para conservação de vias urbanas sem pavimentação nas regiões urbanas do Lagoa (onde está o São Conrado) e Imbirussu (que abrange o Jardim Carioca). A contratação foi em 2018, com valor inicial de R$ 5,6 milhões. Mas, com aditivos, o valor subiu para R$ 37 milhões e seguem ativos até 2024. 

Rua Elis Regina, localizada no Jardim São Conrado. (Foto: Marcos Maluf)

Na Receita Federal, os donos da Engenex são Edcarlos Jesus Silva e Paulo Henrique Silva Maciel (sobrinho de Edcarlos). A empresa foi aberta em 2011 por Mamed Dib Rahim, 52 anos, e o pai, que deixou a sociedade em 2016. No ano de 2021, houve mudança no quadro societário, com a transferência para Edcarlos e Paulo Henrique.

Mamed também foi alvo da Operação Cascalhos de Areia na semana passada. A Engenex tem capital social de R$ 950 mil e foi contratada pela prefeitura para conservação de ruas sem asfalto.

“Quanto ao processo de transferência da empresa Engenex, chamou atenção o fato de que a transferência/venda ocorreu ao tempo em que ela possuía contratos (milionários) vigentes com a Prefeitura de Campo Grande”, cita o Ministério Público. O saldo remanescente dos contratos em 2021 era de R$ 10,1 milhões.  

O Campo Grande News tenta há oito dias contato com a empresas e pessoas citadas, mas não obteve reposta. 

Oficial – Apesar de ser a gestora do dinheiro público, a Prefeitura de Campo Grande informa que os questionamentos sobre suspeitas de irregularidades devem ser remetidas ao Ministério Público. 

“A investigação, realizada com base em denúncia e que corre sob sigilo, está sendo conduzida pela 31ª Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e Social de Campo Grande. Neste contexto, e levando em consideração que o inquérito corre sob sigilo, os questionamentos quanto ao mesmo devem ser direcionados ao órgão investigador, ou seja, ao Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul”, aponta a administração municipal. 

O texto oficial prossegue: “O Município de Campo Grande não tem conhecimento dos termos da investigação e continua à disposição dos órgãos para fornecimento de dados, informações e esclarecimentos. Porém, reforça que o inquérito corre sob sigilo, estabelecido pela própria justiça”.

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