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Por uma geografia da música do espaço (p)latino

Lucas Manassi Panitz e Elisa Freese Lima (*) | 14/06/2022 08:30

A relação entre espaço e música, embora insólita para muitos, não é nova no mundo acadêmico. Ela inicia com geógrafos e etnólogos no século XIX e recebe o nome de “geografia musical” já na década de 1920. No Brasil, o tema é inaugurado em 1991 por João Baptista Ferreira de Melo e marca o desenvolvimento de um fértil campo de estudos na geografia brasileira que, hoje, apresenta dezenas de teses e dissertações, além de livros e dossiês dedicados ao tema.

Nesse contexto é que desenvolvemos uma pesquisa sobre as redes musicais entre o sul do Brasil, Argentina e Uruguai – um recorte que denominamos de “espaço platino”. É claro que o trânsito de músicos com os países vizinhos não é recente e remonta às históricas relações culturais entre os referidos países. Nas últimas três décadas, contudo, vemos a formação de redes musicais, produto de um intenso intercâmbio de técnicos, produtores, artistas e público em cidades como Porto Alegre, Pelotas, Buenos Aires, Montevidéu. Para isso, conduzimos observações de campo, entrevistas e análises de materiais fonográficos e escritos ao longo de dez anos, construindo um desenho de pesquisa de tipo multilocalizado – no qual a presença física nas referidas cidades se fez necessária para compreender a formação dessas redes.

Inicialmente, vemos em Vitor Ramil e sua “Estética do frio” aquilo que parece ser um dos catalisadores dessas redes. O manifesto do compositor pelotense, publicado nos anos 90, pode ser sintetizado em duas ideias básicas. A primeira é de que o frio, enquanto metáfora, é algo definidor da cultura sulista tanto externa quanto internamente; segundo Ramil, ao incorporar uma versão “fria” do Brasil, o artista estaria ajudando a construir a diversidade cultural do país, fortemente calcado em suas representações tropicais. A segunda é a proximidade aos países do Prata; segundo ele, não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história (a transição entre o sul do Brasil e os países vizinhos). Com isso, destaca a contiguidade de aspectos naturais e culturais como o pampa, o clima frio/temperado, a territorialidade da milonga e a cultura gaucha como um todo. Essa proposta reverberou fortemente em compositores uruguaios e argentinos de sua geração: os irmãos Daniel e Jorge Drexler propõem o termo templadismo, se referindo aos climas temperados, sem excessos; Kevin Johansen fala em subtropicalismo, destacando a provável influência do clima na cultura e, consequentemente, na produção musical.

Longe de insinuações deterministas, o que os artistas realizam é um esforço de representação de sua geografia imaginária, situando os sentidos que emergem de um mundo regional mais amplo – que, nesse caso, é também transfronteiriço, pois se espalha para além dos limites políticos dos países.

Essa compreensão colocou em relação diversos artistas, que passaram a buscar um diálogo entre suas ideias musicais. Ao longo das primeiras duas décadas deste século, vimos acontecer uma enormidade de parcerias, que incluíram encontros, eventos, shows, debates e gravações de discos. Em cada cidade estudada, reconhecemos distintas funções, ora mais ligadas à formação de um público especializado, ora no uso da expertise técnica do ramo fonográfico, ora nos espaços de encontros e criação musical. Boa parte desta “movida” se encontra no longa metragem A Linha Fria do Horizonte, de Luciano Coelho.

Levando em consideração uma amostra de discos lançados entre 2009 e 2016, foi possível compreender a importância dessa geografia representada pelos artistas. Capas de discos frequentemente utilizaram-se dos mapas e das paisagens que põem em diálogo a platinidade e a brasilidade. Nas canções, podemos notar a mistura do português e do espanhol (e mesmo dos sotaques ao cantar uma língua estrangeira); além disso, a mistura de ritmos como o tango, a bossa nova, a milonga, o samba, que é reforçada pelas texturas e formas de tocar, trazidas pelo sopapo, tambores de candombe, bandoneon, viola caipira, violão, entre outros.

A pesquisa nos levou a concluir que a música, e suas redes, têm contribuído para recompor elementos culturais silenciados pela historiografia das elites nacionais de cada país – sobretudo das primeiras décadas do século XX.

Por isso, utilizamos o termo (p)latinidade para nos referirmos à dimensão identitária ao mesmo tempo específica e geral. Com ela queremos dizer que o espaço platino faz parte da diversidade latino-americana. Assim, enxergamos as fronteiras não como a passagem de uma formação política a outra, mas como portas da América Latina, a partir das quais podemos acessar também um passado muito mais poroso que as representações historiográficas oficiais.

Em uma nova fase do projeto, chamada “(P)latinidades Decoloniais”, a perspectiva decolonial foi um ponto de partida para repensar a escuta sobre as configurações musicais na região — com o intuito de dar a conhecer os sujeitos historicamente silenciados na música (p)latina e na sociedade gaucha/gaúcha como um todo. Embora as redes a que nos referimos anteriormente tenham sido muito importantes para o desenvolvimento da música na região, vemos um baixo protagonismo de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ — e suas estéticas e/ou tradições permanecem invisibilizadas.

Com o objetivo de valorizar e colocar em evidência o trabalho musical desses sujeitos, criamos no Instagram o perfil (P)latinidades Decoloniais a fim de compartilhar a investigação, criando conteúdos sobre o tema, divulgando o trabalho de artistas desse cenário, ao passo que construímos nosso material de análise. Nessa esteira, a página também tem a intenção de trazer a conscientização ao público sobre a importância de descolonizar os próprios gostos musicais, valorizando a rica e diversa música feita no espaço platino com um olhar atento às vozes das/os artistas de grupos sociais historicamente silenciados.

O resultado das distintas etapas da pesquisa será apresentado brevemente sob a forma de um atlas musical digital, no qual será possível ler histórias, ouvir canções, conhecer discos e navegar pelo espaço, reconhecendo que a relação entre música e geografia se dá muito além da mera localização em um mapa. A música reflete o mundo social, suas paisagens, territórios, conflitos e poderes. Mas ela também pode reelaborar o passado e anunciar novos mundos possíveis – mais diversos, plurais e inclusivos.

(*) Lucas Manassi Panitz é Professor Adjunto do Departamento Interdisciplinar da UFRGS Litoral, coordenador do projeto de pesquisa “Geografia da Música: mapeando eventos, políticas e redes musicais no espaço platino”.
(*) Elisa Freese Lima é acadêmica do curso de Música Popular, compositora e bolsista pelo Edital UFRGS Meninas na Ciência 2021.

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