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Avanço da justiça humana no Vaticano

Por Cláudio dell'Orto (*) | 17/08/2013 11:42

Ao editar o Motu Proprio que alterou o Código Penal do Vaticano, o papa Francisco promoveu um dos maiores avanços da história da Igreja Católica Apostólica Romana. A medida, contemplando a aplicação de penas em casos de crimes contra crianças e adolescentes, tortura e lavagem de dinheiro, reduz sensivelmente a defasagem cronológica do sistema jurídico da Santa Sé.

Tal anacronismo era tão enfático que a própria comunicação oficial das medidas, feita pela Rádio do Vaticano, salienta que as novas leis alinham-se aos seguintes pactos internacionais: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; as Convenções de Genebra de 1949, contra os crimes de guerra; a Convenção Internacional de 1965 sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial; a Convenção de 1984 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; e a Convenção de 1989 sobre os direitos da criança e seus protocolos facultativos de 2000. Ou seja, adéqua-se o Vaticano a normas e princípios implantados há muito tempo na maioria dos países ocidentais.
Ao efetivar as mudanças às vésperas de sua visita ao Brasil, o Sumo Pontífice ratifica perante o mundo a sua disposição de combater, com a justiça dos homens, os problemas que têm afetado a Igreja nas últimas décadas e suscitado dúvidas quanto à sua coerência na aplicação de cânones religiosos. Ao ignorar no plano do direito as numerosas denúncias de pedofilia e de desmandos e desvios de recursos em seu banco oficial, o Vaticano comprometeu perante muitos a sua credibilidade como porta voz do Evangelho. Especialistas acreditam que muitos católicos romanos migraram para outras igrejas cristãs em razão desses problemas mundanos que ganharam repercussão midiática.

A tipificação dos delitos de tortura e lavagem de dinheiro e a definição clara dos tipos de crimes contra crianças e adolescentes, incluindo o tráfico humano, prostituição, violência e atos sexuais, prática e divulgação de pornografia, ganham relevo porque revelam a busca de uma jurisdição penal mais eficiente num ambiente que deveria ser marcado exclusivamente pela religiosidade. Reconhece-se a necessidade da justiça humana para assegurar um ministério religioso de maior credibilidade perante os fiéis.

Outro aspecto importante do Motu Proprio foi a extinção da sentença de prisão perpétua, considerada inútil e desumana pelo pontífice. Adota-se um regime semelhante ao do Brasil, com pena máxima de 30 anos, como aqui, ou de 35 anos de privação de liberdade. O novo código também inclui dispositivos específicos para crimes contra a humanidade, abrangendo o genocídio e a segregação racial.

As medidas inovadoras, que entram em vigor em 1º de setembro, serão aplicáveis, como tradição do Estado pontifício, sob a égide do princípio da personalidade, não apenas no território do pequeno Estado incrustado na cidade de Roma, como também em todo o mundo. Isso significa que um padre que cometa um dos crimes previstos dentro de qualquer estabelecimento da Igreja, em qualquer país, estará sujeito, também, ao julgamento e punição pelo sistema judiciário do Vaticano. Assim, além da incidência do Direito Penal do país onde a infração for cometida, opera-se a incidência da legislação do Vaticano, conforme a possibilidade concreta de exercício da jurisdição. Aumenta-se a possibilidade sancionatória, considerando-se qual dos Estados soberanos puder capturar o criminoso.

Ao adotar esse avanço legal, a Igreja revitaliza-se perante seus membros, valoriza-se institucionalmente e no âmbito das relações multilaterais e ratifica um conceito universal pétreo: em quaisquer circunstâncias, mesmo que servindo a Deus, os homens não podem viver sem Justiça.

(*) Desembargador Cláudio dell´Orto é o presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ).

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